Cuiabá, 10 de Março de 2025

OPINIÃO Sábado, 08 de Março de 2025, 15:53 - A | A

Sábado, 08 de Março de 2025, 15h:53 - A | A

ELISMAR BEZERRA

A vida como um quarador

Nossos Sertões se fizeram das mãos e sabedorias dos que se entranharam nas paisagens da Gente Originalíssima, substanciando-se dos cheiros e cores e sons de árvores, de bichos e aves, de lagos, ribeirões, corixos e rios de praias e banzeiros e peixes e f

ELISMAR BEZERRA

Os ermos do Brasil, os seus Sertões profundos, foram formados por uma gente deserdada dos confortos e progressos dos que referenciavam seu viver na civilização europeia, e viviam arrogantes, ensimesmados, encastelados no nosso litoral, de costas para o interior, desprezando-o; saudosos e sonhando em voltar para as suas terras de além-mar: carregados com as riquezas que arrancavam daqui, inclusive às custas das servidões mais abjetas e perversas, que inventaram e impuseram a esta Terra. Nossos Sertões se fizeram das mãos e sabedorias dos que se entranharam nas paisagens da Gente Originalíssima, substanciando-se dos cheiros e cores e sons de árvores, de bichos e aves, de lagos, ribeirões, corixos e rios de praias e banzeiros e peixes e falares indígenas; amalgamaram assim, o novo Ser, e de um jeito tão singular, que se viram sem precisão de outro lugar para viver e ser: o Brasil lhes bastava!

Sim, em lugar que tem gente, há mais lugar ali: é que cada um tem em si, o mundo de onde se originou, o mundo dos pais e mães dos pais e das mães que nem conhecera, mas nele se entranhou desde à cópula que o gerou e, mais ainda, pelo primeiro olhar que viu, enquanto sugava a seiva que lhe foi fazendo gente, acariciado por gestos de amor tão profundos, que jamais sentiu igual, depois que se entendeu por gente. Sim, somos a vida do lugar, mais o próprio o corpo – que expressa em muito a vida do lugar, que é realizada pela totalidade do corpo-mente. Ah, a espiritualidade tem profundidades e larguezas tão imensas, que até Freud, na agonia para entender as suas complexidades, as lindezas terríveis da mente, deu-se a alucinógenos; quem sabe querendo o alívio do entendimento, do saber libertador, em meio ao turbilhão intransigente das perguntas sem respostas nas aparências das coisas ...

A mente é corpo, mas, feita de uma efemeridade de pranas – de modo que, aberta a cabeça, desconcerta ver e saber que aquele branco acinzentado é onde se guarda e urde todos os pensamentos e sabedorias. Olhe o velho Karatsipá, do qual nos contam os Irmãos Villas Boas (A Marcha Para o Oeste), que se pôs a dançar e cantar em meio a um temporal que caía sobre a aldeia; preocupados disseram ao filho que exposto daquela forma, naquela idade, seu pai poderia adoecer e morrer, ao que o indígena retrucou impávido, sereno: “Deixa assim mesmo, ele quer morrer”. O rigor e os desafios diários da natureza talharam naquela gente, no curso de séculos, um modo de viver e ser tão profundamente solidário, que, mesmo o amor-próprio, tinha a dimensão do outro; e, assim, de um de jeito que ninguém impunha ao viver de ninguém, o seu peso – porque cada um sabia que o viver de cada um era pesado demais para carregar mais um. Era necessário cada um poder viver por si, irmanado ao outro: caminhar, caçar, correr do perigo, enfrentar a ameaça e descansar sem cansar ninguém; daí o velho querer morrer. O filho o entendia e não se abalava, porque a verdade da fé que entrelaçava todos dava-lhe por certo que, morto, o seu pai renasceria num filho seu, e era ao neto que estava reservado herdar as qualidades do avô, para ser um grande e muito respeitado chefe...

Dizem-nos mais, os Villas Boas: que uma moça, cujo marido morresse e a deixasse grávida, abandonaria a maloca e, à certa distância dali, ataria sua rede sobre uma cova feita por ela mesma e, sozinha, sem qualquer assistência daria à luz; em seguida sacrificaria a criança, enterrando-a na cova – aí é que algum parente lhe daria alguma comida e, restabelecida um pouco, voltaria para a maloca: ninguém lhe perguntaria nada, nem ela diria nada a ninguém. “Se a criança não tem pai, quem é ela? Quem vai cria-la?”; justificavam assim, aquele gesto extremo, os indígenas. Vejam (sem olhos cegos de religião, que tudo pode condenar no justo e anistiar o malfeitor) a individualidade do velho e da moça tão horizontalizada nos demais, que não queriam as suas dores reverberadas nos outros iguais, para não debilitar todo o viver da comunidade.

Com Ananias, deu-se tudo muito dessemelhante disso. Filho de Dona Benvinda, vivia entrevado pelas dores e deformações da lepra; pra si, tinha um par de muletas rústicas, que lhe pensava mais na mente que nos sovacos doridos. Assim, nas raras vezes que saía à rua, ia gemendo pra dentro de si, para que ninguém lhe ouvisse e olhasse piedosamente, fazendo pesar mais no seu ser, aquele sofrimento. Dos poucos dedos das mãos, restavam partes gangrenadas que mal lhe serviam para apoiar o próprio peso nas muletas; enquanto os pés reduzidos a cotos retorcidos, ficavam guardados numas botas de couro, pretas, feitas conforme as medidas do que a doença deixara restar para calçar. Vivia de se esforçar diuturnamente, só para seguir vivendo; em tudo, às expensas da velha mãe: mulher que ninguém nunca lhe vira sorrir alegremente, como se feliz estivesse ...

Benvinda chegara no Mato Verde com a juventude de mulher amadurecida pela vida dura, rosto bem feito de tez branco-alaranjada, queimada de sol, de estatura pequena; chegou sem marido, morto por doença no coração. Vinha das divisas do nordeste do Goiás com a Bahia, em fins dos anos de 1950; trazia consigo minguada economia e os dois filhos: Ananias, o mais velho, e João, ainda rapazote, que já era muito habilidoso com as coisas da alfaiataria. Adquiriu um bom terreno, fez casa espaçosa, com quintal grande, onde plantou de tudo, como era o costume; das plantas todas, com o correr dos anos dois abacateiros se destacaram em dezenas de metros de altura, via-se de longe seus frutos grandes, lustrosos, carnudos. Habilidosa nas artes de mulher-mãe, para ganhar o sustento de si e de Ananias se deu ao oficio de lavar roupas para as famílias mais abastadas...

Lavar roupa era um trabalho cansativo, especialmente as roupas de vestir (calças, camisas, vestidos, saias, anáguas, fraldas), que tinha que lavar em casa, com a água retirada do poço – porque era limpa, sem o amarelado da água do rio. Além do trabalho em si, tirar a água lá do fundo do poço puxando balde a balde, com braços cada vez mais cansados, era dificultoso. As roupas mais pesadas (redes, lençóis, cobertas, toalhas e algum tapete), essas ela lavava no rio, onde a abundância de água lhe facilitava o serviço. Assim, às terças-feiras via-se, cedinho, Benvinda sair de casa com uma bacia de alumínio grande, cheia de roupas, sobre a rodilha na cabeça bordada de cãs pelo tempo. Na beira do rio se ajeitava sobre uma tábua grossa de madeira pesada, que ficava presa sobre umas pedras, e se dava ao serviço – quase sempre acompanhada por outras mulheres...

Lavava as roupas com sabão-de-soda, espumoso, que ela mesma fazia em casa – à moda dos fenícios, inventado muito antes de Cristo; embora houvesse os que não queriam suas roupas lavadas com sabão-de-soda, então lhe forneciam “sabão-de-barra”, industrializado, vindo de fora, comprado no armazém: era um luxo exibido pelos que podiam. Na beira do rio, o mesmo ritual: ensaboava, esfregava, batia na tábua para tirar o primeiro sabão, ensaboava novamente e estendia as peças sobre a relva verde, viçosa, para quarar ao sol, para recuperar as cores e a brancura dos tecidos. Formava-se então, um colorido bonito, de muitas cores, que se via de longe, emoldurando as lavadeiras assentadas sobre as tábuas de lavar e o rio; depois enxaguava tudo, e deixava a secar ali mesmo, porque, molhadas, não tinha força para leva-las até sua casa ...

Benvinda chegava em casa, e ia terminar de fazer o de comer: temperar o feijão que deixara na panela de ferro no fogão de lenha, fazer o arroz e passar dois bifes grandes na frigideira: para si e para Ananias. Comia, lavava as vasilhas todas; então, dava-se a um descanso reparador, um cochilo breve na preguiçosa que ficava na varanda, que dava pro quintal. Acordava descansada. Avivava as brasas do fogão, punha lenha de murici e passava um café; que tomava satisfeita com Ananias. Depois é que enchia o pesado ferro de passar com as brasas mais graúdas, e passava as roupas até tudo estar conforme o necessário, para entrega-las nas casas.

Vivia assim, soturnamente, em função do filho entrevado; de modo que, mesmo à casa do filho João, que se casou cedo e tinha vida própria com a esposa, poucas vezes ia. No enfrentamento de todas as precisões e dificuldades, era próprio das gentes do Sertão fazer suas promessas aos Santos de sua fé; Benvinda também fizera uma, talvez a mais fervorosa: para São Lázaro, cumprida todo ano, em meados de dezembro. Nesse dia sua casa se enchia de gente, a casa e o quintal; cedinho vinha as comadres e mulheres mais novas, que a considerava e tratavam como mãe-Benvinda, pelo fato de ter assistido, como parteira, o parto de suas mães. Ouvia-se a primeira reza, depois é que todas se davam ao preparo do Almoço do Dia de São Lázaro, como se dizia. Era um trabalho alegre, de confirmação da devoção, de se ter o sentimento da presença divina ali ...

Antes do meio dia, fazia-se a reza principal para depois servir o almoço a todos os que compartiam aquela fé: arroz, frango cozido e carne de gado com mandioca, tudo cozido. Nenhuma bebida alcoólica. Era uma festa singular, de conversas sóbrias, de uma ou outra brincadeira respeitosa, todos vestidos com ao menos uma peça na cor branca – e, especialmente, cada um com o seu cão à mão. Ananias vestindo uma roupa branco-resplandecente, que contrastava com suas botas pretas bem lustradas e com as muletas, ficava sentado ao lado de uma mesa enfeitada com rendas e flores, emoldurando as Imagens de Lázaro e Jesus Cristo; olhava tudo em silêncio, respondendo os cumprimentos com cara de satisfação. A celebração se desenvolvia em comiseração, um compadecimento às suas dores e esperanças – como se todos se oferecerem em profunda humildade aos Céus; daí que, para participar do Almoço que era o seu ápice, cada um tinha que levar o seu prato, sem colher ou garfo, e um cachorro – com quem repartiria a comida.

Dava-se, então, uma cena singular, em que todos buscavam a mais profunda demonstração de humildade e desimportância: as pessoas se serviam da comida, sentavam-se ao chão com o prato agasalhado sobre algum pedaço de madeira ou pedra, e comiam com as mãos, repartindo o alimento do prato com o seu cachorro. Havia sempre um cão mal-educado, avançando sobre o outro, criando confusão, quebrando o ar de contrição. Benvinda se alegrava. Seus olhos apertados no rosto miúdo transpareciam a alma em paz, satisfeita. Olhava o filho, com o olhar de Mãe feliz. Gostava de ver as pessoas unidas na celebração da sua fé, complanadas naquela singeleza-chã, das desimportâncias dos cães, na intenção de se mostrarem humildes e serem vistas assim nas Alturas ...

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