Cuiabá, 18 de Outubro de 2024

INTERNACIONAL Quarta-feira, 16 de Outubro de 2024, 08:17 - A | A

Quarta-feira, 16 de Outubro de 2024, 08h:17 - A | A

doutrina militar

Linha dura do regime iraniano pressiona para que país desenvolva armas atômicas

Ameaça de um grande ataque israelense alimenta o debate sobre a mudança da doutrina militar do Irã, que proíbe esse tipo de armamento

El País

No dia 5 de outubro, o solo tremeu em Semnan, cerca de 200 quilômetros a leste de Teerã. Foi um simples terremoto, registrado pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos, mas os usuários das redes sociais começaram a especular sobre um suposto teste nuclear do Irã. Na quarta-feira passada, o jornal iraniano Tehran Times, considerado o porta-voz não oficial em inglês da ala dura do regime daquele país, publicou na sua primeira página “A demanda por armas nucleares está crescendo”, num artigo em que citava Ali, um enfermeiro iraniano de 25 anos que expressou a sua decepção pelo fato de este terremoto não ter sido realmente um teste atômico. Nesse mesmo dia, foi publicada uma carta de 39 parlamentares conservadores dirigida ao Conselho Supremo de Segurança Nacional na qual solicitavam a revisão da doutrina de defesa nacional, que proíbe a fabricação de armas atômicas, para "fortalecer a dissuasão defensiva" do seu país. A carta citava o “regime sionista” [Israel].

Desde que em 1º de outubro o Irã lançou cerca de 180 mísseis contra o território israelense — em resposta aos assassinatos do líder do Hamas, Ismail Haniya, em Teerã, e do líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, no Líbano —, o país aguarda a vingança anunciada do seu inimigo israelense. Este horizonte e a possibilidade de prolongamento da guerra no Médio Oriente, com o previsível apoio de Washington ao seu aliado Israel, pôs fim à mão que o presidente iraniano, o moderado Masud Pezeshkian, tinha estendido ao Ocidente sobre a questão nuclear ao assumir o cargo em julho.

Em 16 de setembro, Pezeshkian declarou a sua disposição de estabelecer conversações diretas com os Estados Unidos para reviver o acordo de 2015 que permitiu a supervisão internacional do programa atômico do seu país para garantir que Teerã não construísse armas nucleares. O alívio das sanções que sufocam a economia iraniana depende deste pacto ou de outro semelhante, algo que as suas autoridades consideram essencial para reduzir o descontentamento com o regime, que ficou evidente nos protestos desencadeados em 2022. À época, dezenas de milhares de cidadãos foram às ruas do país depois que uma jovem curda que havia sido presa por usar o véu incorretamente, Yina Mahsa Amini, morreu sob custódia da polícia.

Os 39 signatários da carta que apela a uma mudança na doutrina militar pertencem ao Conselho de Coligação das Forças da Revolução Islâmica, uma facção ultraconservadora, muito leal ao líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, que tem a última palavra sobre a questão nuclear. Eles personificam a linha dura, cujas propostas geralmente refletem as orientações da liderança do regime, especialmente Khamenei.

Estes falcões têm-se oposto tradicionalmente a qualquer acordo com o Ocidente, mas as suas vozes não são as únicas ouvidas hoje em dia no Irã a favor da aquisição de armas atômicas pelo país.

— Em Teerã há um coro cada vez mais forte [exigindo] a aquisição — deste armamento, salienta Naysan Rafati, principal analista para o Irã no centro de estudos International Crisis Group, por e-mail desde os Estados Unidos.

Outro especialista, que reside no Irã e que falou ao El País sob condição de anonimato, acrescenta:

— Um número crescente de iranianos apela a uma revisão da doutrina de defesa face às ameaças de Israel. Este debate público significa que algo está se movendo.

Até o neto do aiatolá Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica, participou dessa controvérsia. O clérigo moderado Hassan Khomeini, que apoia Pezeshkian, “aludiu há poucos dias numa entrevista à necessidade de aumentar as fontes de dissuasão do Irã, o que o mundo inteiro viu como uma referência clara a uma modificação no programa nuclear iraniano”, sublinha o analista de Teerã, que afirma que neste momento “está descartada a ideia de um acordo nuclear ou de qualquer tipo com os Estados Unidos”.

Em menos de um mês, os acontecimentos se precipitaram no Oriente Médio — com o assassinato de Nasrallah, a invasão e os bombardeios israelenses do Líbano e o ataque com mísseis contra Israel. Neste contexto, o presidente iraniano deixou de estender a mão aos Estados Unidos na questão nuclear e passou a criticar duramente Washington e, mais significativamente, a União Europeia, mesmo que Bruxelas tenha tentado salvar o pacto nuclear depois de Washington o ter rompido em 2018. Também demonstrou sua proximidade com a Rússia. Na sexta-feira, antes da sua primeira reunião com o presidente Vladimir Putin num fórum regional em Ashgabat, Turquemenistão, Pezeshkian afirmou que Israel viola o direito internacional porque tem “o apoio dos EUA e da UE”.

Uma questão 'política'
A Embaixada do Irã em Madri disse ao El País que a posição oficial do país sobre a questão nuclear não mudou. Teerã sempre negou que o seu programa atômico tenha fins militares e uma fatwa (decisão) de Khamenei proíbe tais armas por serem contrárias ao Islã. O acordo assinado pelo país em 2015 — o Plano de Ação Conjunto Global com EUA, França, Reino Unido, Rússia, China, Alemanha e UE — obrigou-o a não enriquecer urânio acima de 3,75% de pureza e a submeter-se a um duro regime de inspeções. A contrapartida era o levantamento das sanções internacionais. Em 2018, quando o Irã cumpria rigorosamente o estipulado, o presidente americano Donald Trump quebrou unilateralmente o pacto e reimpôs sanções a Teerã. Ali, o enfermeiro citado pelo Tehran Times esta quarta-feira, disse:

— Não percebo porque é que não desenvolvemos apenas armas nucleares, uma vez que já estamos a pagar o preço por isso.

Após a ruptura do acordo, o Irã já não se considerava obrigado a respeitar o que foi acordado. Em 2021, começou a enriquecer urânio com 60% de pureza. Um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) indicou em fevereiro que o país acumula mais de cinco toneladas de urânio enriquecido, o suficiente para fabricar duas bombas nucleares caso atingisse a pureza de 90%. Vários serviços de inteligência ocidentais estimam que Teerã precisaria “entre seis meses e um ano” para fabricar armas atômicas.

 A obtenção deste armamento pelo Irã é “mais uma questão política do que técnica”, destaca o analista que fala desde Teerã, que acredita que este debate poderá ser “um balão de sondagem” dirigido aos iranianos e à comunidade internacional. Este “alerta para conter a retaliação quase certa de Israel” é um dos fatores que poderá estar por detrás destas pressões da ala dura do regime, diz Naysan Rafati. Israel — que presume-se que tenha armas nucleares, embora não o admita — considera que um Irã com armas atômicas é uma ameaça à sua existência.

Outra razão citada por Rafati é “a degradação do Hamas e do Hezbollah”, membros do Eixo de Resistência do Irã, a aliança liderada por Teerã contra Israel e os Estados Unidos. Especialmente o Hezbollah, que servia ao Irã para “impedir o lançamento de ataques contra o território iraniano". Com esses grupos “dizimados” pelas guerras em Gaza e no Líbano, concorda Barbara Slavin, investigadora do Centro Stimson, o Irã “sente uma pressão crescente para encontrar outra forma de dissuadir Israel de o atacar”.

— O Irã deixou claro que se Israel, com ou sem os Estados Unidos, atacar as suas instalações nucleares, abandonará o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e construirá armas atômicas. [Se Israel] se abstiver de atacar estas instalações, Teerã provavelmente tentará tornar a sua resposta proporcional — enfatiza Slavin.

A exigência da linha dura da República Islâmica tem outra leitura, diz o analista Daniel Bashandeh. A política nuclear “sempre foi usada para condicionar a dinâmica interna e criar coesão dentro do regime”. As autoridades estão agora tentando “cerrar fileiras e recuperar a sua credibilidade, afirmando que podem munir-se deste armamento”. O destinatário dessa mensagem não é apenas Israel, nem os EUA ou aliados do Irã, como o Hamas e o Hezbollah. Também é “a própria população iraniana”.

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