Cuiabá, 18 de Outubro de 2024

INTERNACIONAL Segunda-feira, 14 de Outubro de 2024, 09:39 - A | A

Segunda-feira, 14 de Outubro de 2024, 09h:39 - A | A

argentina

'Serra elétrica' de Milei tem impacto em educação, saúde, ciência e cultura

Enquanto a política de ajuste implementada pelo governo arranca elogios dos organismos internacionais, dentro do país ela enfrenta protestos de setores afetados pela maior redução do gasto público em 65 anos

O Globo

Ao confirmar que este ano a economia argentina vai despencar 3,5%, o economista-chefe do Banco Mundial para a América Latina e Caribe, William Maloney, afirmou que o país “teve um ano difícil (…) principalmente devido a ajustes fiscais bastante extremos que foram necessários”. Mas, enquanto a política de ajuste implementada pelo governo do presidente de ultradireita Javier Milei está arrancando elogios dos organismos internacionais, que esperam um crescimento em torno de 5% para 2025, dentro do país, o chefe de Estado enfrenta permanentes protestos e críticas por parte dos setores afetados pela maior redução do gasto público em 65 anos: saúde, educação, ciência e tecnologia e cultura, entre outros.

Salários desvalorizados
A Argentina, como em muitos outros momentos de sua História, tornou-se cenário de marchas, ocupação de universidades e manifestações na porta de hospitais públicos como o Garraham, dedicado a crianças e adolescentes, e ainda considerado modelo na América Latina e no mundo. O ajuste de Milei teve um impacto brutal em áreas sensíveis para os argentinos, e provocou a reação cada dia mais ruidosa dos afetados. Em matéria de educação, o corte foi gigantesco: os recursos do Estado para escolas e universidades públicas caíram 40% este ano, comparados a 2023.

No caso específico das universidades, atualmente em pé de guerra com a Casa Rosada, a redução atingiu 31%, segundo o Centro Ibero-americano de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Inovação (Ciicti). Ontem, o presidente assegurou que “a universidade pública nacional serve apenas para os filhos dos ricos e da classe média alta”, declaração que acentuou o clima de mal estar em momentos em que mais de dez instituições estão ocupadas por estudantes e professores de todo o país, movimento que deve se intensificar.

Desinformação
A fala de Milei foi rebatida por especialistas como Franco Piccato, da agência de checagem de dados Chequeado. Em sua conta na rede social X (ex-Twitter), Piccato afirmou que “quase 48% dos recém-matriculados nas universidades públicas são a primeira geração de estudantes universitários das suas famílias.

— A meta do governo era conseguir uma redução do déficit fiscal de 3,5% do PIB em 2024, mas com a recessão e a queda na arrecadação de impostos ficou mais complicado e foi necessário ajustar mais os gastos do Estado. Estamos chegando a um corte de 4,5% do PIB, algo inédito na História de nosso país — explica Nicolás Lavagnino, pesquisador do Ciicti.

 Alguns programas do extinto Ministério da Educação (hoje a pasta faz parte do Ministério do Capital Humano), sofreram uma redução expressiva em matéria de poder aquisitivo de seus beneficiários. Um dos casos mais dramáticos é o do Programa de Bolsas Progredir, que ajuda estudantes do Ensino Médio: entre 2024 e 2025, a perda de poder aquisitivo dos estudantes que o recebem atingirá 66,5%.

Além de aplicar sua serra elétrica nos recursos destinados a escolas e universidades, o governo de Milei implementou reajustes salariais para professores e trabalhadores do setor de educação muito abaixo da inflação, que entre janeiro e setembro deste ano acumulou aumento de 209%. O governo conseguiu conter uma escalada inflacionária que em 2023 parecia arrastar a Argentina para uma nova hiperinflação, mas os salários pagos pelo Estado continuam muito abaixo do aumento de preços.

Médicos na pobreza
A mesma situação afeta os trabalhadores da saúde. Segundo estimativas de sindicatos locais, hoje 70% dos médicos e profissionais da saúde que trabalham para o Estado têm salários que os colocam abaixo da linha da pobreza.

— Um neurologista infantil que trabalha no Garraham ganha 1,2 milhão de pesos (em torno de R$ 5.700). Um médico que está começando recebe apenas 600 mil pesos (R$ 2.857), quando a linha da pobreza está hoje em 778 mil pesos (R$ 3.704) — diz Teresa, uma enfermeira do Garraham, que pediu para não informar seu sobrenome.

O hospital, que já foi de vanguarda na região, está realizando apenas cirurgias simples, por falta de insumos e profissionais. Segundo Teresa, este ano 30% dos trabalhadores pediram demissão pelas condições precárias de trabalho e os baixos salários.

— Querem que sejamos indigentes— desabafa.

O investimento estatal em ciência e tecnologia também caiu 32% este ano, frente a 2023. O projeto de Orçamento para 2025, de acordo com dados do Ciicti, prevê uma queda dos recursos para o setor de 1,1%, em relação a 2024. O Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) perderá, se o projeto de Orçamento para 2025 for aprovado nos termos enviados pela Casa Rosada, 41% de recursos em termos reais (considerando a inflação dos anos 2024 e 2025). Este ano, a perda foi de 23,7%.

Cinema paralisado
A cultura, setor que nunca foi prioridade para Milei, também vive momentos dramáticos. Num país que até o ano passado estreava, em média, 200 filmes e documentários todos os anos, a produção nacional com financiamento do Instituto Nacional de Artes Audiovisuais (Inca, a Ancine argentina) este ano é zero.

— Nos perguntamos qual é o objetivo do governo: destruir algo como o cinema, que é parte da identidade argentina? — pergunta o diretor Marcelo Piñeyro, cujo primeiro emprego formal foi como produtor do filme “A História oficial”, que venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986.

 — Este ano, o cinema argentino esteve em festivais pelo mundo. Como vamos continuar sem o Incaa, que sempre foi o ponto de partida, sobretudo, para os jovens cineastas? — questiona novamente o diretor. — Uma das primeiras medidas do novo diretor do Incaa foi a suspensão de iniciativas de apoio ao cinema nacional e demissão de trabalhadores.

A produtora Andy Testa comentou que o Incaa não está recebendo novos projetos, e foram cancelados mais de 150 que já tinham uma avaliação positiva do instituto. Estima-se que a indústria audiovisual argentina gera cerca de 700 mil postos de trabalho diretos e indiretos, além do impacto positivo que tem na imagem do país no exterior.

— Tudo o que o Incaa concede como subsídios para o cinema depois volta para a economia nacional. Temos uma indústria cultural paralisada — enfatiza a produtora argentina.

A industria editorial também é uma das vítimas do ajuste de Milei. Num país que tem cerca de 1.300 livrarias, das quais, segundo dados de um estudo do Foro Cultural Mundial de Cidades, 734 estão na capital do país, a venda de livros caiu 30% em 2024, aponta Oche Califa, membro da União de Escritoras e Escritores (UEE):

— Vemos livrarias fechando e editores cancelando projetos — afirma o escritor. — No caso do livro, sofremos uma combinação de falta de apoio estatal e consequência da recessão econômica.

Segundo Califa, “hoje fazer um livro infantil é inviável na Argentina”.

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