Diz o Aurélio que jogo é a “atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que definem a perda ou o ganho”. Por aqui nos referimos àquilo que remete às atividades do pensamento. Vamos tratar brevemente do modo como o que pensamos se dá num cenário de uma espécie muito particular de jogo. Sabemos que o pensamento obedece a um sistema de regras a que entendemos como linguagem. E que a escrita e a fonética são possibilidades diversas de representar esse processo de maneira simbólica. O fato é que nós assimilamos de tal forma esse sistema de regras que o naturalizamos, ao ponto de não nos darmos conta do jogo no qual jogamos e somos/estamos em jogo.
Uma das questões decorrentes de uma tomada de consciência do jogo no qual estamos todos submersos é o clássico questionamento sobre a própria identidade. Quantas vezes nos paramos pensando: quem sou eu? E como nos parece importante responder a esta questão. Entender qual é a substância daquilo que nos faria singulares, únicos, diferentes de todos os outros. Não é a questão da natureza humana, se é que temos uma natureza. Mas a questão da individualidade. O que sou? O que somos?
O primeiro ato deste movimento poderia estar ligado à percepção de que, seja lá o que somos, não somos sozinhos. Estamos sempre em relação. Não conseguimos ser isolados. Como diria Ortega Y Gasset, somos sempre “eu e minhas circunstâncias”. Se vamos viajar, comentamos, postamos. Se temos fome, podemos fazer a comida que compramos do mercado, podemos pedir pelo aplicativo. Podemos ficar sós e ler um livro que outro solitário escreveu. Enfim, sempre estamos em relação com os outros, com as circunstâncias.
Mas estar em relação é apenas uma pista do que somos. Mas uma pista que pode nos levar à compreensão de que talvez não haja individualidade. Porque não parece possível estar em relação e ainda se manter único, não dividido (in-divíduo). À medida em que nos relacionamos somos sempre outros em cada relação. E nenhuma relação é idêntica à outra. A cada vez estamos, de novo, divididos. Entre o antes, o durante, e o depois da relação.
O segundo ato deste movimento, poderia nos levar à ideia de que, sendo muitos, diferentes em cada relação, estamos sempre em jogo. Não necessariamente jogando, o que dá uma conotação negativa à ideia do que somos. Mas estamos em jogo, porque parece inerente às relações humanas, colocar-se em jogo. E são tantos jogos, grandes jogos, joguinhos, circunstâncias mais emocionantes, outras desinteressantes. Algumas decididas antes do início da partida, outras que se arrastam e parecem não ter fim.Quando o jogo termina você já não se reconhece e demora um pouco até entender que, sem perceber, já está jogandode novo.
E aqui está o ponto decisivo. Foi dito: “sem perceber”. Sim, o jogo é a condição, está dado. Nós eventualmente nos damos conta de que estamos no jogo, ainda que sejamos o próprio jogo. Nós pensamos, mas também somos pensados e só às vezes “percebemos”.Vamos tentar ser mais claros: conduzimos nossos pensamentos até que uma ideia surge, “do nada”, como dizemos. Esse pensamento não pensado, ainda que possa ser deduzido do processo e esforço que fazíamos para esclarecer algo, representa um outro, do qual não temos o menor controle. Do mesmo modo ocorre quando este outro surge de modo aparentemente aleatório, manifestando emoções nas quais não nos reconhecemos. Pelo menos não ao ponto de externalizar este outro (pensamento). Costumo dizer aos meus alunos que sealguém soubesse o que passa em nossa cabeça,correríamos o risco de sermos presos. Não é à toa que a etimologia de jogo remete ao latim “jocus”, de onde temos a palavra jocoso, por consequência, gracejo ou zombaria(HOUAISS, 2009). Há sempre um outro que nos revela, nos ridiculariza, nos descobre. Esse outro não é necessariamente outra pessoa. Somos nós mesmos, algumas vezes jogando, mas na maioria das vezes refénsda próxima jogada.
Como em todo jogo, assumimos uma função, determinada pelo contexto da partida. Mas como são muitos jogos, também são muitas as funções que exercemos. De modo que não podemos ser nada que se mantenha inerte. Adeus sujeito cartesiano. Somos movimento, somos muitos movimentos. E sempre em relação ao outro. Seja o outro que nos move a desejar, como no caso daquele que não se percebe enredado a realizar o sonho do pai ou da mãe, sendo engenheiro, médico, dentista, raramente filósofo. Seja o outro em mim, que está sempre à minha frente já sendo o que nem sei que sou, já desejando quem eu não escolhi. Porque está claro que não me apaixono por quem eu quero. Há um outro em mim que já escolheu.
De qualquer modo, este sujeito dividido, na maior parte dos casos, continuará a buscar a fantasia de ser um indivíduo e não perceberá que não joga sozinho, mas já está desde sempre imerso no jogo da linguagem que o antecede.
Flávio Fêo tem mestrado e doutorado em Filosofia Contemporânea pela PUC-PR. Ainda é professor e pesquisador. Temas de maior interesse: Crítica da Modenidade, Tecnologias de si e Descontinuidade da História.