As mulheres sertanejas sabiam e faziam de tudo, não tinham preguiça para a lida nas coisas do sertão, faziam sem reclamos, sem descuidarem das arteirices das crianças. “Mãe” Aristéia era uma dessas mulheres, semblante sério, de quem não tinha motivos pra “ficar com os dentes à mostra”; e era Parteira. As crianças, cujo parto assistira, chamavam-na de mãe – e os amigos destas também. Além dela, de ofício reconhecido, ali no Mato Verde, só “Mãe Marina”; que conheci já muito entrada nos anos: boa pessoa, miudinha, um metro e meio de altura, alegre, especialmente quando tomava uma cachacinha, que gostava. Como Mãe Aristéia, Mãe Marina foi parteira de dezenas de meninos e meninas, num tempo em que médico era coisa do outro mundo...
Naquelas lonjuras de sertões e estradas de lama e pó, ali, na margem esquerda do Araguaia, cada mulher tinha sua parteira de confiança: a que ia “pegar” sua cria; era um tempo que as mulheres tinham muitos filhos. Desde o instante em que se descobria gestante, a grávida escolhia e era “acompanhada” pela parteira da sua preferência; que ouvia e botava sentido em cada informação que a mulher lhe dava: seus enjoos, algum cansaço recorrente, azia que não existia antes, dor nos quartos, nas cadeiras, um sangramento, e tantos outros incômodos, que um homem não alcança saber. De jeito que, fosse o caso, preparava-lhe uma tintura com cachaça e alguma raiz, semente ou casca ou raspa do caule de alguma árvore; mas, à vista de alguma complicação, o remédio era uma garrafada, feita com água fervida e vegetais que, depois de curtida no sereno, era tomada em doses bem regulares – ou, ainda, dava-lhe uma infusão de flores, ervas cultivadas no quintal ou colhidas no mato, só para acalmar.
Grande parte dos remédios de farmácia, nasceu dessas experiências e sabenças da nossa gente benfazeja...
As Parteiras conheciam a anatomia das mulheres, por si e pela experiência de assistir às outras: quando a moça se transformava em mulher para além das intimidades que a desvirginara, e seu ser se elevava à dimensão superior de poder gerar outra vida em suas entranhas. Elas sabiam o sentido, a razão, de cada dor no corpo, especialmente quando a parturiente se revolvia em esforços dolorosos para expulsar de si um corpo-vida, que preparara no tempo de nove meses. Era quem via primeiro o novo ser, era quem sabia e procedia com os primeiros cuidados para que a nova vida, síntese das carnes desejosas e espíritos amorosos dos dois, pudesse vir e banhar-se da luz – iluminando a vida do casal.
Eram mulheres de muita sabedoria, mas sem intimidades com o mundo das letras; de fato, quase todas as Parteiras não sabiam ler. Naqueles tempos de sertões, não era incomum encontrar pessoas que não conheciam dinheiro, não sabiam o valor das notas, inclusive entre elas. O ofício de parteira se desenvolvia revestido de certa transcendentalidade; e assim, por suas atividades, não recebiam pagamento, especialmente em dinheiro; de modo que, quando lhes ofereciam, recusavam meio constrangidas, como se fosse pecado. Havia, sim, um reconhecimento respeitoso, carinhoso, dispensado por todos, o tempo todo – tanto que as crianças lhe chamavam de mãe e lhe tomarem a bênção – de um jeito tal, que, percebendo-se que tinham alguma precisão, alguém sempre acudia sem que pedissem, na forma da urgência percebida...
Lembro um dia com Mãe Aristéia: eu e um dos seus filhos, o Gilmar, de apelido Dotô. Ela e ele iam buscar lenha, e eu fui com eles; fui porque era perto e ela ia junto, senão, a Mãe não deixava – é que naquele tempo, menino tinha Pai e Mãe, com autoridade de Pai e Mãe.
Caminhávamos na veredinha, juntando galhos secos de murici, que é bom pra lenha, catando frutas da época: puçá, mangaba, aricuri, inharé, cagaita, grão-de-galo, azedinha. E ela a nos perguntar-ensinando, o nome das árvores que ladeavam o caminhozinho de pó fino, que se levantava com o caminhar: jatobá, cumbaru, mirindiba, cinzeiro, canjirana, landi – ela os conhecia todos; nós, quase nenhum. Lembro dela enfeixando os galhos, amarrando e colocando-os sobre uma rodilha, que lhe protegia a cabeça; ia assim, com a lenha sobre a cabeça, como se não levasse peso.
Perguntávamos de tudo, éramos crianças no começo das aprendizagens. Havia naquele nosso universo, a preocupação de um saber menos que o outro sobre as coisas do sertão: nome de árvore, de bichos, de aves, de peixes, qual a melhor isca, que árvore era boa pra cabo de enxada, pra fazer pião, pra cabo de baladeira. Ninguém queria saber pouco. Além dos livros na escola, o que se apresentava desafiante às nossas mentes e curiosidades, era aquele mundo araguaiense de águas e árvores e bichos, varjões e céus, que parecia imenso, sem fim. Mas, aquela imensidão parecia terminar do outro lado do rio, porque olhando à leste, víamos a totalidade do nosso universo terminando na conjunção do Céu com a Terra, atrás das árvores, do outro lado da Ilha do Bananal.
Quando se é criança, tudo parece muito grande; o mundo, não. Porque o mundo é do tamanho do ver, do sentir e do imaginar de criança...
Assim, sábios, alguns povos têm como necessário, “uma aldeia inteira, para educar uma criança”. Talvez isto expresse a tradutibilidade mais acabada de totalidade; pois, de fato, a plenitude da particularidade, ou do indivíduo, expressa o universo em que se constituiu. É a manifestação das sabenças desenvolvidas em milênios de solidariedade necessária, de amorosidade terna e leve, inclusiva, de pertencimento interativo e respeitoso ao mundo do outro: a manifestação da significância concreta do viver pleno de uma gente que não concebe, nem toma o outro pelo interesse de o explorar para engrandecer-se pelo ter. Uma criança, tornada o centro da preocupação e dos cuidados da aldeia inteira, cresce e se forma com as dimensões das bem-querenças e saberes de toda a sua gente; dum jeito que as indecências do egoísmo deletério, não lhe afigurarão como necessidade para o seu ser. Daí os donos do poder, neste Ocidente, alcunharem pejorativamente aquela gente e os indígenas daqui, de primitivos...
O modo de ser e viver dominante, por sua natureza capitalista, faz o indivíduo buscar se fazer gente pela apropriação do que o outro produz, quando lhe expropria também a alma, ao lhe impor a necessidade vital de ter que arranjar trabalho nos negócios do expropriador, para garantir a sua sobrevivência diária e dos filhos. Animaliza-se, assim, as pessoas, turvando-lhes o horizonte para o mais da vida, pela fome ou pela ameaça constante da fome – que é a experiência humana mais desesperadora.
Nestes tempos de tecnologias, máquinas e equipamentos, usadas para coisificar os Trabalhadores, segundo o interesse comercial, desde a tenra idade (quando lhes é negada a Educação, que os autonomizariam intelectual e moralmente), a Organização Mundial da Saúde está a recomendar o Parto Normal. Mas, dizia-me uma amiga, entendida nas coisas da medicina, que os médicos e médicas, dependentes de equipamentos tecnológicos, adeptos do cesáreo, não teriam as sabenças para realizar um Parto Normal. Não sei. Mas, para além disso, por tudo o que foram as Parteiras, é injusto que as cidades decorrentes das vilas sertanejas de outrora, ainda não tenham monumentos vistosos, erguidos nos seus endereços mais destacados, para homenagear as Parteiras; de modo a reconhecer a importância de suas presenças na história do País – e para lembrar o que fora a vida no Sertão: que o sistema produtivo hegemônico está reduzindo às cinzas...
(*) Dr. ELISMAR BEZERRA ARRUDA é professor.