Um acidente de carro no início de uma manhã em uma estrada próxima ao Aeroporto Internacional de Damasco, na Síria, há 30 anos, mudaria para sempre a vida de um reservado oftalmologista que morava a milhares de quilômetros dali, em Londres.
O médico em questão era Bashar al-Assad, ditador que comandou a Síria do ano 2000 até o início de dezembro, quando uma operação-relâmpago de forças rebeldes chegou à capital e forçou sua fuga para Moscou.
Até os 29 anos, no entanto, Bashar não planejava entrar na política. Na juventude, ele ingressou na Universidade de Damasco para estudar medicina e realizar, assim, um sonho herdado do pai, Hafez, que não pode fazer faculdade por falta de dinheiro.
Ascensão ao poder
Hafez al-Assad havia se destacado nos estudos e queria ser médico, mas sua família não tinha condições de bancar a formação superior, nos anos 1950. Assim, ele decidiu seguir carreira militar. Duas décadas depois, ele chegaria ao poder na Síria.
Para entender a trajetória de Bashar, é necessário conhecer a história de como seu pai, Hafez, moldou o país.
Ainda na escola, Hafez iniciou sua vida política no partido Ba’ath, um movimento socialista, pan-arabista — que visava a unificação das nações árabes em um único Estado — e secular (ou seja, sem caráter religioso).
Enquanto Hafez subia na hierarquia da Força Aérea, ele continuava a atuar politicamente em um momento conturbado da Síria, que chegou até a formar uma federação com o Egito entre 1958 e 1961, sob a liderança do militar egípcio Gamal Abdel Nasser.
Após a dissolução dessa federação, uma série de golpes de Estado da Síria se seguiram, com militares e civis do Ba’ath ora unidos, ora em conflito.
Hafez al-Assad emergiu vitorioso de diversos conflitos internos e expurgos em 1970, quando encabeçou um novo golpe e depôs o antigo líder ba’athista, Salah Jadid, colocado em prisão perpétua.
Dinastia Assad
Vindo de uma família alauíta, parte da minoria xiita do país, Hafez se consolidou no poder distribuindo cargos entre outros grupos sociais sírios, incluindo a maioria sunita. Ele também centralizou as decisões e iniciou uma ditadura de culto à personalidade com um forte aparato repressor, incluindo milícias alauítas comandadas por seu irmão mais novo, Rifaat.
Todo esse aparato tinha um herdeiro claro: Bassel al-Assad, o filho homem mais velho de Hafez.
Desde a juventude, Bassel vinha sendo educado e treinado para suceder o pai como chefe de Estado e ditador. Assim como Hafez, ele foi colocado na carreira militar, fez faculdade em engenharia e ciências militares, foi à União Soviética receber treinamento, e entrou nas Forças Especiais, onde comandou a Guarda Republicana, responsável pela segurança presidencial.
Bassel era visto como carismático, e a propaganda estatal o colocava como uma figura de liderança. Mas um episódio apressou esse processo: em 1984, o então ditador Hafez foi internado e entrou em coma após um infarto. Seu irmão, Rifaat, até então um forte aliado, tentou tomar o lugar de Hafez.
Quando o ditador teve a saúde restabelcida, mandou o irmão para o exílio.
Esquisitão 'geek'
Depois disso, as aparições de Bassel ao lado do pai se tornaram mais frequentes. Já Bashar, três anos mais novo, vivia longe dos holofotes. Ele obteve sua graduação na Faculdade de Medicina de Damasco em 1988 e começou a trabalhar em um hospital militar nos arredores da capital.
Quatro anos depois, decidiu estudar oftalmologia no Reino Unido.
Em Londres, Bashar conheceu Asma Akhras, uma sírio-britânica que havia nascido na Inglaterra e trabalhava no banco de investimento JP Morgan, que se tornaria sua mulher anos depois.
De acordo com a emissora inglesa Sky News, Asma largou sua carreira no mercado financeiro depois de uma viagem à Líbia, onde o casal foi hóspede de ninguém menos que o então ditador, Muammar Gaddafi.
De acordo com o especialista em Oriente Médio Neil Quilliam, entrevistado pela NBC News, Bashar era visto em Londres como “um esquisitão ‘geek’ da TI”, em referência ao seu interesse por computação, “completamente alheio à política do país. Ele não demonstrou interesse [no poder], não ingressou no Exército”.
Acidente e morte
Bashar al-Assad poderia ter vivido no anonimato se não fosse um episódio em 21 de janeiro de 1994: naquela manhã, Bassel morreu ao bater sua Mercedes em uma estrada a caminho do aeroporto, onde pegaria um jato particular para passar férias nos Alpes, na Europa.
Ele dirigia em alta velocidade no momento do acidente, não usava cinto de segurança, e a visibilidade estava comprometida por uma forte neblina. Sua morte foi constatada no local.
Imediatamente, Bashar foi convocado de volta a Damasco. Sua carreira na medicina estava encerrada, e Hafez deu início à sua preparação para assumir seu posto.
“Foi uma espécie de corrida contra o tempo”, disse à NBC News David Lesch, biógrafo que conheceu e entrevistou Bashar regularmente entre 2004 e 2009. “O seu pai queria aumentar a legitimidade de Bashar dentro do governo, conceder postos de autoridade dentro do governo, o suficiente para que ele pudesse assumir o poder.”
Colocado em carreira militar, Bashar foi promovido rapidamente a coronel. Hafez, com a saúde em declínio, expurgou aliados que poderiam se opor a uma transição de poder para seu filho. Ele morreu em 2000, aos 69 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Breve primavera
Os planos de Hafez funcionaram perfeitamente.
Logo após sua morte, o Parlamento aprovou uma emenda à Constituição que baixava a idade mínima de 40 para 34 anos para que alguém pudesse assumir a presidência do país, permitindo que Bashar, com 34 anos à época, fosse eleito em uma eleição de candidatura única.
Intelectuais e políticos sírios vislumbraram um período de distensão da ditadura Assad — e, durante cerca de um ano, Bashar se apresentou como um reformista, arrefecendo a censura e a perseguição, num período conhecido como a Primavera de Damasco.
Em seu momento mais simbólico, centenas de prisioneiros políticos foram libertados da temida prisão de Mezze.
Em 2001, no entanto, Bashar retomou o caminho da repressão e ordenou prisões de ativistas. O culto à personalidade voltou à tona, com paradas militares e demonstrações públicas de apoio.
Bombardeios em Aleppo
A repressão brutal aos protestos de 2011 pelas forças de Assad foram o estopim de uma guerra civil sangrenta ao longo de 13 anos, que deixou milhões de refugiados e resultou em 500 mil mortos, segundo algumas estimativas.
Alguns dos métodos de Bashar durante a guerra civil lembravam os de seu pai, Hafez. Em 1982, Assad pai estancou um levante na cidade de Hama, liderado pela Irmandade Muçulmana, rival do Ba’ath, com bombardeios indiscriminados em regiões civis da cidade. Analistas dizem que o número de mortes pode ter chegado a 20 mil.
Da mesma forma, três décadas depois, a Força Aérea Síria lançou ataques aéreos a hospitais e a bairros inteiros de Aleppo para conter o avanço de grupos rebeldes.
Neste mês, após forças anti-Assad entrarem em Damasco, prisioneiros foram liberados do complexo de Sednaya, famoso local de tortura de adversários do regime.
A dinastia Assad na Síria terminou após mais de 54 anos, no último dia 8 de dezembro, quando Bashar e sua mulher deixaram o país em direção a Moscou, onde tiveram o asilo concedido pelo Kremlin.